01 outubro, 2013

Discurso sobre a "Identidade Franciscana"


Neste domingo, tivemos a sessão solene de São Francisco no Grêmio Literário Santo Antônio. O orador da noite, Kaynan Cappuci, escolheu falar sobre a identidade franciscana, que conquistou a cada um dos ouvintes. Leia o texto na íntegra:



"Para onde nos impele o espírito?"

Saúdo, com estima, a mesa deste centro acadêmico composta pelo diretor, Frei Rodrigo da Silva Santos; pelo presidente, Gustavo Antônio Gomes Ferreira; e pelo secretário, Ítalo Viggiani; e estendo as minhas saudações de "paz e bem" a  todos os que se fazem presentes.

Meus caros, nós ouvimos falar muito de São Francisco, de sua vida, dados cronológicos e até alguns florilégios acrescentados pelos hagiógrafos ao longo dos anos. Quem sabe nem todos conheçam a verdadeira essência do franciscanismo, a verdadeira identidade franciscana. E é sobre ela que falarei esta noite. Francisco de Assis está morto, dele temos apenas a motivação e o espírito de conversão. Que nós possamos abraçá-lo verdadeiramente.

Para melhor compreensão de minha prédica, dividi-la-ei em quatro tópicos, sendo eles:
- síntese de nossa identidade;
- vida radicalmente evangélica;
- vida em fraternidade e minoridade;
- missão na igreja e no mundo.

Síntese de nossa identidade

"A Regra e vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade" (RB 1).

"A Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis é uma fraternidade na qual, mediante a profissão religiosa, os frades, seguindo mais de perto Cristo, movidos pelo Espírito Santo, se doam totalmente a Deus, amado sobre todas as coisas, vivendo o Evangelho na Igreja, segundo a forma observada e proposta por São Francisco" (CCGG 66).

Essa é a síntese de toda a vida de um frade mnor.

Diante desta proposta, desta forma vitae, descobrimo-nos imperfeitos, fracos e necessitados da misericórdia e do auxílio de Deus. Desde o primeiro contato com o espírito franciscano nos encontros vocacionais até o choque que recebemos quando chegamos ao seminário, nós estamos sendo inseridos nessa realidade de conversão e radicalidade. Conversão dos valores, atitudes e inclusive da própria vida.

Uma coisa é certa: Francisco de Assis viveu e assumiu o evangelho literalmente e sem glosas (ad litteram et sine glosa). Mas, não pensem, ou melhor, nós temos certeza que esse foi e é um processo gradativo, um projeto para a vida inteira. Viver o Evangelho sem glosas em pleno século XXI não é algo tão simples, exige um constante empenho e um cuidado especial na hierarquização dos valores presentes na nossa vida.

É comum acharmos desagradáveis os horários da nossa fraternidade, o trabalho, a convivência, a oração, o estudo. Nossos dias, frequentemente, se tornam cansativos e massantes à primeira vista. Meus caros, estamos num processo formativo e para que um dia consigamos fazer um discernimento consciente e equilibrado é necessário que nos coloquemos nesse caminho. Como aspiramos vivê-lo se não o conhecemos? Uma coisa é no papel, outra é a realidade, o feijão com arroz.

O Evangelho não foi vivido e encarnado por Francisco numa realidade à parte; o jovem assisiense sofreu, lutou e fez de sua vida uma conversão contínua. Encarnou o Evangelho no dia a dia, assim como nós vivemos, no feijão com arroz. Teve medos, incertezas, angústias, passou frio, sentiu fome, teve raiva e, muitas vezes, se questionou sobre o que estava fazendo. Viveu o Evangelho ou, pelo menos se colocou nesse processo. Não é fácil, não é para os fracos, exige que coloquemos a vontade e vida nas mãos do Senhor.

É necessário que nos questionemos acerca de nossa caminhada. Aliás, quando foi a última vez que nos questionamos? Para onde estamos indo?

Coloquemo-nos nesse processo! Vamos assumir esse desafio de conversão gradativa.

Para ajudar na radicalidade evangélica, a Ordem elencou pontos essenciais para a vida do frade menor. No documento "A nossa identidade franciscana", nos são apresentados, de forma clara e objetiva, elementos centrais da forma vitae.

Uma vida radicalmente evangélica

Somos chamados a observar o Santo Evangelho sem glosas, como citei anteriormente. Meus caros, o Evangelho não é um mercado, onde podemos escolher e comprar o que mais nos agrada. O Evangelho é vida, nele está contido a verdade do Reino de Deus.

No seguimento de Jesus Cristo não há lugar para os mornos, os carreiristas. A vida radicalmente evangélica é quase, ou melhor, é uma exigência da atual conjuntura. Devemos caminhar seguindo mais de perto as pegadas do Crucificado.

No coração humano não há lugar para mais nada quando está inundado pelo Evangelho. Uma vez que aderimos a esse projeto somos impelidos a viver os conselhos evangélicos, somos impelidos a viver em permanente conversão, assim como Francisco o fez.

Vida em fraternidade e minoridade

Nesta segunda dimensão somos chamados a ter consciência de que somos uma fraternidade. Isto é fato, somos uma. Agora a qualidade da vida fraterna nós é quem definiremos. Somos todos filhos do mesmo Pai e comungamos do mesmo ideal. No dia a dia é mais difícil colocarmos em prática, mas não é por isso que devemos desanimar. Reconhecer o Cristo no irmão é reconhecer a sua dignidade e o seu valor humano e social. Nós valemos o que somos diante de Deus, diz o Poverello. Por que ainda insistimos nas tantas divisões?

Quando ouvimos falar de minoridade e vida de pobreza, normalmente associamos ao que o mundo capitalista nos ensinou: miséria, humilhação e sofrimento. A pobreza vai muito além disso; a pobreza é reconhecer que tudo o que temos ou possuímos nos veio de Deus, nada devemos reter para nós, antes, o que temos e somos devemos colocar à disposição e ao serviço dos outros e dos desígnios divinos. É antes de tudo nos despirmos de nós mesmos, da nossa vida, vontade, desejos e anseios para melhor podermos nos doar ao Reino, vivendo como menores entre os menores. Testemunhando com simplicidade os mais belos valores: o próprio Evangelho.

Devemos sempre ter em mente que o nosso Deus é o Deus do Magnificat, que derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Devemos sempre estar ao lado dos mais pobres, dos leprosos de nosso tempo, junto dos sem-voz e sem-vez, ali é o nosso lugar.

Missão na Igreja e no mundo

E há também uma terceira dimensão que vem até nós através da missão na Igreja e no mundo.

Todos os frades devem ser católicos, esse é o requisito básico. Também deve ter uma intensa participação na comunidade, na dimensão da Igreja física e espiritual. No seio da comunidade o frade deve trabalhar junto do povo de Deus.

Francisco de Assis disse uma vez: "Pregue o Evangelho, se necessário use palavras". Em outra ocasião disse também: "Amem-se uns aos outros, assim como diz o Senhor: este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Mostrem nas obras o amor que têm uns para com os outros, como diz o Apóstolo: não amemos com palavras, nem com a língua, mas em obra e verdade" (RNB). Se optarmos por seguir estes ensinamentos conseguiremos evangelizar muito mais.

Temos que ter em mente que evangelizar não é apenas pregar o Evangelho, mas também promover a dignidade humana. Permitir e anunciar que o mais importante é a vida, que está acima de qualquer tradição ou regras.

Somos chamados a viver como "peregrinos e forasteiros", vivendo verdadeiramente a itinerância nua. Temos a certeza que a vida eterna há de vier, mas temos a obrigação de trabalhar pela instauração do Reino no hoje, no agora. Somos também chamados ao diálogo; quando se compreende o coração alheio é muito mais fácil construir laços e colocar em prática o maior dos mandamentos - o amor.

Meus irmãos, quando foi a última vez que nos dispomos a escutar o irmão sem preconceito? Essa deve ser uma prática constante. Vale a pensa arriscar seguir e viver o Evangelho? Conscientes de nossas dificuldades e limitações estamos abrindo espaço para Cristo?

Devemos arriscar, meus caros. Um dia arriscamos sair de casa, o primeiro passo já foi dado, continuemos. Dando valor aos pequenos e bons momentos. De grão em grão a galinha enche o papo. Em pequenas e pequenas atitudes formaremos uma sólida identidade franciscana. Ninguém está pronto, todos estamos no mesmo barco.

O essencial da identidade franciscana eu já falei; mas tenhamos a certeza de que não é possível construí-la de um dia para o outro. Somente é possível por meio de muito trabalho, de pequenos gestos. Então venho propor um desafio. Um gesto fraterno, uma atitude cordial. Seja arrumar a cama do irmão, ajudá-lo na tarefa ou na limpeza. Apenas uma por seminarista. Topam?

Essa é a identidade franciscana, essa é a nossa identidade.

Para melhor encerrar a minha prédica citarei um texto do teólogo Leonardo Boff:

"Ouvi um velho confrade razoável e bom, perfeito e santo dizer:

'Se sentires o chamado do Espírito, atende-o e procura ser santo com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, porém, por humana fraqueza, não conseguires ser santo, procura, então, ser perfeito com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, contudo, não conseguires ser perfeito por causa da vaidade de tua vida, procura, então, ser bom com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças. Se, ainda, não conseguires ser bom por causa das insídias do Maligno, então procura ser razoável por causa do peso dos teus pecados. Então, procura carregar este peso diante de Deus e entrega a tua vida à divina misericórdia.


Se isso fizeres, sem amargura, com toda a humildade e com jovialidade de espírito, por causa da ternura de Deus que ama os ingratos e maus, então começarás a sentir o que é ser razoável, aprenderás o que é ser bom, lentamente aspirarás a ser perfeito e, por fim, suspirarás por ser santo. Se tudo isto fizeres, cada dia, com toda a tua alma, com todo o teu coração e com todas as tuas forças, então eu te asseguro irmão: estarás no caminho de São Francisco, não estarás longe do Reino de Deus!'".


Tenho dito e muito obrigado!

Por Kaynan Cappuci Javaroni Fantebom, seminarista do 3º ano

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